5.1.18

Eduardo Pitta escreve sobre Pequenos Delírios Domésticos






«Depois do universo distópico que caracteriza o seu segundo romance (obra que a levou a bisar o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores), a autora regressa ao real com este livro de contos que leva por título um verso “roubado” a Sérgio Godinho. À laia de prefácio, Chão zero dá testemunho da devastação que assolou o país durante os incêndios de Outubro: «A minha infância é um esgoto atravancado de detritos.» A casa dos bisavós perdida num mar de cinza. Com invulgar economia retórica, e muita eficácia, a frase-síntese diz tudo. Um poema da autora, Apfelstrudel, separa esse texto de abertura do resto do livro. Estamos agora no centro das periferias desapossadas: os prédios-gaiola com as suas «vidraças enjauladas» e toda a panóplia Kitsch que dá cor à miséria dos que têm abertura de telejornal garantida, esse microcosmo de onde por vezes saem voluntários para as madrassas do ódio. Manuel, ou Man-hu-el (o rapaz convertera-se), foi um deles. A Síria pareceu-lhe uma boa solução para virar costas à disfunção familiar. Era isso ou continuar «aos caídos, a arrumar carros, a assaltar velhotas pensionistas para pagar a próxima dose…» Mas na hora da verdade faleceu-lhe a certeza. E o Chico também não foi capaz. O desfecho é absolutamente português. Não deixa de ser uma ironia que o adjectivo «domésticos» surja no título de um livro cujos primeiros contos estão focados em problemas de natureza planetária, tais como a tragédia das migrações e seus efeitos colaterais. Homens e mulheres, aos milhares, que o Mediterrâneo vai engolindo, depois de terem fugido da guerra, da fome, da escravidão, de toda a sorte de abusos e violências. A ilusão da terra prometida foi-lhes fatal: «E alguns, fiados nesse doce rugir da indulgência, deixam-se ir…» O conflito entre Israel e a Palestina não é esquecido. Ana Margarida de Carvalho tem uma prosa limpa, fluente em vários registos, dotada de vocabulário anterior ao regime tuiteiro. Sirvam de exemplo contos como Uma Vida em Centrifugação ou, mais denso, Os Elefantes Têm Sismógrafos nos Pés.» [Eduardo Pitta, no blogue Da Literatura, a propósito de crítica publicada na revista Sábado, 28/12/2017]

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