30.6.17

Sobre Baixo Contínuo, de Rui Nunes



«A escrita de Rui Nunes há muito prescinde de comodismos literários e nunca teve ilusões quanto ao futuro da Humanidade e, provavelmente, da arte: “segue-se: o lixo”. De resto, e como o título por si só sugere, “Baixo Contínuo”, que se divide em quatro andamentos, é um livro com uma forte componente musical, onde encontramos referências explícitas a J. S. Bach, Beethoven, Boulez e Stockhausen. Entre a composição e a desintegração (“da melodia, do corpo, da palavra”), o jogo musical dá-se também a ver no prelúdio ao desconcertante “Basso Continuo / de Rui Nunes” que surge na página 15. Mas pouco importa, no fundo, onde começa ou termina este livro, pois a terrível lucidez que o atravessa (os olhos abertos não podem não ver”) diz-nos claramente que “tudo é restos, sobras”. A uma “música total”, que pode ser lida enquanto alegoria da solução final sonhada por Eichmann e outros minuciosos peritos da barbárie, sobrepõem-se ora “sons terminais”, ora o “peso do primeiro som”: “uns ouvem os piolhos a rebentar entre as unhas dos polegares, outros, uma suite de Bach”. E, embora tudo pareça acontecer nos antípodas de Wagner, atente-se no fortíssimo Leitmotiv da mulher perseguida/lapidada (que “de queda em queda, repete a morte”) ou ainda do frustrante encontro sexual de um velho com um jovem extremamente depilado. De um modo cada vez mais conciso e acutilante, a escrita de Rui Nunes afasta-se das futilidades romanescas em voga: “temos a morte no final de cada palavra. E isso torna-nos livres”.» [Manuel de Freitas, Expresso, E, 27/6/2017]

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