8.5.17

Sobre Veneza, Um Interior, de Javier Marías




«Javier Marías vai ao longo do livro, em capítulos curtos, divagando (muitas vezes com uma indisfarçável ironia) sobre assuntos como os venezianos, o arquipélago, a eternidade, o passeio nocturno, e o espaço ideal. Veneza, que chegou a ter 300 mil habitantes e hoje terá menos de 70 mil, é, para o veneziano, a Cidade por excelência, sendo o resto do mundo considerado “o campo”. Mas este não se move em toda a cidade, mas num espaço reduzido (mais ou menos aquele que os turistas lhe deixaram), é por isso que nos conta de uma idosa, natural de Veneza, que nunca passou pela praça de San Marco, recebendo notícias dela como se se tratasse de um lugar longínquo. São estes venezianos que Marías descreve como vestidos de uma maneira que parece que vão sempre para uma festa elegante, a qualquer hora do dia e em qualquer estação do ano, e as mulheres de pernas fortes de subirem tantas escadas e a caminharem sempre muito depressa.
Tentando fugir à tentação de escrever sobre o conhecido, sobre o muito de turístico desta cidade (que é “o único lugar do mundo” que o facto de não a visitar pode estragar a imagem final de uma pessoa por não ter cumprido “com as suas obrigações estéticas”), o autor enfia-se por vielas esconsas que só os locais conhecem, cafés e esplanadas onde os turistas não se sentam, praias e hotéis que não aparecem nos filmes, vistas que nenhum viajante vê. E ao fazê-lo compõe também uma imagem que se afasta do real e que se cola à ideia romântica de uma Veneza depositária de um tempo eternamente elegante; esta cidade de Marías, não sendo a dos turistas e viajantes, é a da aristocracia anacrónica e de uma classe média bastante abastada que em Agosto se desloca para as montanhas Dolomitas, que deve ser a maior distância a que se afastam da cidade, na sua “existência retirada”. São os mesmos que Javier Marías descreve como detentores de uma indiferença e falta de curiosidade pelo que não seja eles próprios e os seus antepassados e que não tem equivalente possível com a dos povos ensimesmados do norte da Europa. Não tendo, obviamente, estes textos propósitos de ‘guias turísticos’, funcionam de maneira quase perfeita como uma espécie de ‘ficção’ do real, que não o sendo poderia ser ou ter sido.» [José Riço Direitinho, Público, ípsilon, 28/4/17]

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